sexta-feira, 20 de maio de 2016

"Na corda bamba"


"Na corda bamba" é o título do primeiro livro de Noel Leopoldo, professor, natural de Peniche.  Infelizmente não pude estar na apresentação da obra, no passado dia 18,  mas já fui ouvindo e lendo ecos da sessão e deixo-vos, neste início de fim de semana, com um dos  poemas do Noel. 
É longo mas vale a pena  "degustá-lo"...assim mesmo: saboreando as palavras e as imagens que sugerem. 
 Se quiserem, podem sempre fazê-lo no local que o inspirou e dá título ao poema: a  
PAPOA

No limite da escarpa avisto um
corvo-marinho de asas fechadas como um estudante com capa
Não sei se ele me vê ou como me vê
Ignorar-me-á talvez
Serei para ele quando muito um escuro recorte
uma singular fachada longilínea
ao capricho do vento norte
Sentirá o cheiro de algas – aroma salgado que lhe perfuma a livre serenidade
de dias feitos de sol e abrigo e peixe
O céu está sarapintado de nuvens brancas e altas – riscos hirtos ou apenas momentaneamente hirtos até que o vento os desmanche para parte incerta certamente para bem longe dali
Na base do rochedo que lhe serve de púlpito a espuma salina das ondas produz
um som explosivo que vem das entranhas
 
Ele é o comandante do navio de pedra involuntariamente ancorado ao fundo por raízes inquebrantáveis
Aquele é o seu lugar – pertence-lhe por direito não consignado na lei dos homens

Olho-o como quem observa a chuva que oblíqua
cai
no chão de um quintal num qualquer fim de tarde embaciado
Olho-o como se observasse uma estátua grega num museu de arte antiga
que podia ser em Paris ou Londres ou Nova Iorque
Não pago para o ver
Ninguém ao meu lado a vê-lo
Nada que não ele me vê

Podia isto ser ao entardecer

não fora ser pleno dia –
a luz do sol lança-se vertical
como o rochedo que o abriga do vento norte hostil

As asas abrem-se por momentos
numa espécie de ritual de acasalamento – o bico apontado a sul para a praia
onde mulheres se abrem ao sol
como recortes pedregosos de baixo-relevo-Cassiano Branco – meras fachadas – cenários curvilíneos com fundo de mar
e dunas

A seara marinha leva-me para longe dali
O horizonte noroeste prolonga-se
por milhares de quilómetros agrestes
Numa terra de ninguém às vezes entrecortada por barcos tripulados por gente que procura chegar
Eu parto sem partir e por isso não chego 

Tenho as mãos vazias
Tiro-as dos bolsos e cruzo os braços
Não tenho sítio para os descansar
O vento que vergasta os picos das ondas traz-me o sol e fecha-me os olhos
Estou suspenso na alta varanda de pedra e rocha e mar
Nada me toca senão a brisa marinha a erodir-me à passagem
Não consigo passar pelo intervalo do vento – os seus braços frios e húmidos percorrem-me o corpo com mãos que me despem
Percorro a costa com o olhar da infância longínqua
na companhia de um velho familiar
Eu sem falar por certo
Não me lembro de abrir a boca que não fosse para absorver o ar
habitado de algas e sal – ainda sem o pó das caravanas e dos curiosos que precisam de carro para absorver a paisagem –
o carro como preservativo
entre eles e o cenário rochoso em alegre passeio estéril e plastificado
fácil de transportar

Ao longe passam veleiros lentos – caracóis de asa branca abrindo a cortina
do horizonte como fecho éclair


Perfilado de negro no exíguo pedestal de pedra devorada pelo roçar do vento e pelo convívio com o mar
o pássaro comanda o seu próprio destino –
dá corda aos ponteiros do relógio
que é apenas seu
Excalibur por si mesmo desembainhada
a seta negra kamikasa a superfície
da água buscando a permanência
Abro os olhos mas não o vejo já
Terá mergulhado nas águas escorregadias e luminosas sem deixar rasto na superfície marinha –
rapidamente cicatrizada
Impelido pelo instinto de caça talvez
ou apenas pelo prazer de mergulhar
no líquido amniótico do ventre submerso 
Vagueará sob um branco tecto
de vagas em turbilhão espumoso como torpedo de penas coberto com destino traçado por si
rumo a qualquer lugar possivelmente longe dali

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