terça-feira, 20 de outubro de 2009

Saramago, Caim e as religiões

Ainda a propósito do post anterior, e já que nele falei em Saramago, hoje decidi dedicar-lhe este post. Não é porque seja fã do escritor, porque confesso que nunca consegui ler uma obra sua até ao fim (é capaz de ser um problema meu!); muito menos o sou da pessoa e da arrogância com que costumeiras vezes vem falar de Portugal e dos portugueses, bem como das convicções de cada um e, sobretudo, das dele próprio.

Vem o post a propósito da cruzada (e a escolha da palavra é propositada) que trava contra as religiões - que, segundo o próprio "...não servem para aproximar as pessoas nem nunca serviram"- e particularmente contra a Bíblia, neste último livro publicado que intitulou "Caim".
Saramago não percebe "...como é que a Bíblia se tornou um guia espiritual. Está cheia de horrores, incestos, traições, carnificinas."
E eu não percebo porque é que Saramago tem tanta necessidade de desacreditar um Deus que -segundo ele- nem existe, para vender livros! Até parece que a luta contra a "manipulação" prepertada pela religião é mais importante que a literatura.
Efectivamente, na Bíblia há relatos de tudo aquilo que diz - concretamente no Antigo Testamento, onde o autor foi buscar a personagem Caim.
A Bíblia é, na verdade, um conjunto de livros escritos em vários géneros literários (relatos históricos, salmos / poemas, epístolas/cartas, evangelhos (relatos sobre a vida de Jesus) - inspirado por Deus, para os que nisso acreditam- sendo que, a sua leitura não conduz o leitor, de per si, às acções nela relatadas. Nesse sentido não pode ser entendida como um manual e, muito menos, como "um manual de maus costumes", como o define Saramago.
É um livro com uma imensa carga simbólica, que não deve ser "lida à letra" e que -para ser verdadeiramente apreciada e entendida- requere algum conhecimento do tempo e dos lugares em que os livros que a compôem foram redigidos, da cultura e da história dos povos que nela vêm referidos e até dos idiomas em que foi escrita. A sua mensagem para os dias de hoje, cabe a cada um que a lê, ou ouve proclamar, retirar para si...se assim o entender.

Saramago também saberá - se efectivamente leu a Bíblia, como diz - que nela são igualmente numerosos os exemplos de amor ao próximo e os ensinamentos positivos, para além de conter belas peças literárias (independentemente do valor religioso que possamos, ou não, atribuir aos textos e às narrativas nela contidas)...mas isso não lhe interessa reflectir! Sim porque, para Saramago, o tema religião "É um motivo de reflexão, não uma fixação."
Ninguém diria!!!
Preocupou-se com a reacção dos judeus - que até não foi inflamada, mas que lhe responderam como ele merece, colocando-o no devido lugar - e surpreendeu-se com "a frivolidade dos senhores da Igreja". A mim não me surpreende a frivolidade do próprio Saramago ao fazer da religião "o ópio do povo"...porque no fundo é disso que se trata e, não é senão essa, a mensagem que quer passar.
Não concordarão com ele todos aqueles biliões de pessoas que, no mundo inteiro, vivem de boa fé a sua religião, sejam cristãos, judeus, muçulmanos ou hindus...só para referir algumas. Provavelmente porque têm necessidade de se ligarem a uma entidade superior, de se unirem aos outros que com ele (con)vivem... "re-ligare", é esta a origem do termo religião. Saramago não terá, porventura, essa necessidade. Ou terá conseguido colmatá-la com outras ideologias, já que é demasiado céptico para "crer" em algo.
É certo que, ao longo da história do mundo, houve (e continuam a haver) momentos particularmente infelizes, em que a religião justificou actos bárbaros contra o próximo (cruzadas, guerras santas, inquisição, leis que colocam em causa direitos básicos, etc). Mas felizmente que, hoje, são muito mais os exemplos positivos da acção da Igreja e dos ensinamentos religiosos por esse mundo fora que as consequências negativas da leitura da Bíblia. E esses, Saramago não os pode ignorar, por mais que queira.
Por mim,desta feita, também não quis ignorar as suas declarações...
Posso respeitar a sua opinião mas não quero respeitar a prepotência com que fala das convicções dos outros, partindo do princípio de que tem toda a razão do mundo...e por isso escrevi este texto.
Quem teve paciência para o ler até aqui também terá toda a liberdade para ler "Caim".
É que aqui não estão postas em causa as qualidades literárias do Nobel português, nem a possibilidade de fruição de uma obra literária já que, apesar do poder da literatura, ainda há que ter em conta a inteligência do leitor e a sua capacidade de interpretação e discernimento sobre o que lê...coisa que, Saramago, não parece reconhecer a quem lê a Bíblia!
A Igreja e a Sociedade, felizmente, evoluiram nalguns aspectos e hoje já não há livros negros, nem inquisição, nem listas de livros proibidos por ditaduras fascistas ou comunistas. "Caim" não constará em lista alguma deste género. Somos livres de ler o que bem nos apetecer e da leitura retirar o que de melhor nos puder dar!

Ps - Algumas das coisas que li para escrever este post:

1 comentário:

Marisa disse...

Amiga Ângela
Não posso deixar de comentar o texto que escreveste acerca do recente livro de José Saramago. Porque como acontece em muitas das coisas que escreves (talvez por influências dos tempos em que nascemos - 2 dias de diferença)identifico-me muito com aquilo que escreves e este post não foi excepção. Por isso apetece-me partilhar...
Apetece-me partilhar que tenho pena deste senhor... porque esta perseguição parece-me mais sinal de uma busca interior! Porque para quem acredita em Deus o horizonte é infinito e a esperança renovada num Deus que nos ama e não nos abandona permite-nos ter serenidade perante os acontecimentos da vida, mesmo na adversidade e nas dificuldades. Particularmente nunca me tinha debruçado de forma especial sobre este texto de Caím... mas ao lê-lo encontro um Deus, que não obstante o pecado do homem, vai ao seu encontro e não desiste dele... também connosco Deus se faz presente no meio das dificuldades e dos erros da nossa vida... quando fazemos algo mal feito, não ouvimos também nós a Sua voz no nosso coração? Ao contrário do que foi dito pelo escritor, o nosso Deus não é um Deus terrível, mas um Deus que procura sempre que o coração do homem se converta ao amor... e o pecado é sempre que estamos afastados desse amor! Encontro neste texto um Deus que é Pai... que perdoa sempre... e que nãoi desiste de cada homem, sobretudo de cada homem pecador. O nosso Deus é um Deus de Amor que se manifesta na vida dos homens, nas circunstâncias de pecado... um Deus que se faz presente porque ama incondicionalmente cada homem. Acredito que de forma especial, neste momento o José Saramago... Vivemos à pouco tempo o ano Paulino e todos estamos recordados que S. Paulo foi um perseguidor furaz e empenhado contra os cristãos. Todos estamos recordados como perante o Amor de Deus, se abriaram os olhos de Paulo e no apóstolo ferveroso e radical em que se tornou...Rezo para que os olhos de José Saramago se abram ao amor de Deus...até ao ultimo segundo de vida ainda é tempo.... não para provar nada... mas porque também o José Saramago é meu irmão e Deus ama-o com predilecção. Acrescendo ainda o facto de a Igreja fundada por Jesus Cristo ser uma Igreja comunidade, em que somos responsáveis uns pelos outros (bonito projecto de Amor o do nosso Deus acerca de nós) e se eu não fizer a minha parte também Deus me perguntará como fez a Caím "Onde está o teu irmão?"